sexta-feira, 30 de maio de 2008

Ao nascer do sol

Foi tudo muito rápido.
Quando acabou a valsa, ele precisava voltar ao castelo, não havia muito tempo para conversa.
'Você tem duas opções, nenhuma outra a mais, tem que escolher entre essas duas.'
'Tudo bem. Quais são?'
'Ou você vem comigo agora, ou me diz onde mora.'
'Ir com você para onde?'
'Para onde eu quiser. Levo você em casa depois.'
Era uma decisão difícil. Não ficava bem uma moça amiga da princesa sair por aí com um desconhecido.
E ela também não poderia dizer onde mora, e se ele aparecesse por lá de repente?
'Eu vou com você.'

A carruagem estava cheia, mas ninguém a conhecia. Assim era melhor.
'Pára aqui.'
'Senhor, estamos no meio da floresta...'
'É aqui mesmo. Pode parar.'
Desceram no meio do nada, mas ela não teve medo.
Seguiram um caminho que ele parecia conhecer bem. Pararam num lugar provavelmente estratégico.
Deitaram e olharam para o céu.
'Nossa. Eu nunca havia reparado todas essas estrelas.'
'Mas não havia como reparar. Não conheço nenhum outro lugar de onde se possa ver o céu assim, tão estrelado.'
E ali ficaram, até amanhecer.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Fantasmas

Quando me perguntaram se eu tinha medo de fantasmas, confesso que pensei logo em minhas histórias tristes. Mas a pergunta não era essa, eu sei. Então eu respondi que não, meio que pretensiosamente. Afinal, não deixa de ter alguma pretensão em dizer que não se tem medo. Um medinho a gente sempre tem.
A questão é que medo mesmo eu tenho dos meus fantasmas vivos. Uns tais que andam aparecendo, de tempos em tempos, perambulando pelos meus espaços, abordando a meus amigos e a mim, por algumas vezes.
Sim, desses eu tenho medo. Eles não vão embora, não me deixam. Eu não os esqueço, mesmo quando acho que já esqueci. E meu coração aperta, de medo, sim, de medo, sempre que os vejo.
Meus fantasmas não me escutam. Não entendem meus sinais. Não sabem que já morreram. Mas eu também tenho lá minhas dúvidas.

Orkut pergunta: quem sou eu?

"Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco...
É você olhar no espelho
Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Saber que é humano
Ridículo, limitado
Que só usa dez por cento
De sua cabeça animal..."

Decifra-me ou devoro-te

"Ah, mas o que significam os versos, quando os escrevemos cedo! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo bastante), - são experiências. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, tem que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos, em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos que magoar quando nos traziam uma alegria e nós a não compreendemos (era uma alegria para outro), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros, e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já se não distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas."


Os cadernos de Malte Lauridge Bridge, de Rainer Maria Rilke